Imaginem a seguinte situação, com
dois desfechos possíveis e suas conseqüências prováveis:
Um marido chega em casa após o trabalho, senta à mesa e a esposa lhe
serve o jantar. Após dar uma garfada no feijão, o marido reclama que está sem
sal, então se levanta e aplica um direto de esquerda no rosto da mulher. Enquanto
ela tenta entender o que aconteceu, o marido começa a berrar:
- Não é só por causa do
feijão sem sal! É por você me trair todo dia com o porteiro do prédio. É por
você tirar dinheiro da minha carteira quando eu estou dormindo. É por você ter
batido meu carro!
1º Desfecho:
A mulher corre ao telefone e aciona a polícia. O marido é conduzido à
delegacia, onde relata as traições, furtos e prejuízos ao delegado mas é preso
mesmo assim. Após sair da cadeia, põe a mulher na rua e pede-lhe o divórcio.
Como conseqüência, ele busca uma nova companheira que lhe seja fiel, que não
lhe furte e que construa com ele um patrimônio sólido. A ex-mulher, nunca mais
o procura, porque a agressão física tornou a relação dos dois insustentável
e, também, porque passou a temer a violência do homem a quem considerava um
trouxa.
2º Desfecho:
A mulher calmamente recolhe seus dentes da mesa, pega o prato do marido,
joga a comida no lixo e a substitui por outra, com o feijão temperado do jeito
que ele gosta, pedindo desculpas pelo esquecimento. Os dois comem, vão para o
quarto, deitam lado a lado e dormem juntos como se nada tivesse acontecido. Como
conseqüência, a mulher continuará traindo o marido com o porteiro do prédio e
também resolverá dar mais atenção ao vizinho, que sempre lança olhares
indiscretos a ela. Além de tirar dinheiro da carteira do marido quando ele
dorme, passará a fazer um pequeno fundo de reserva no banco, superfaturando as
despesas com mercado. Entretanto, nunca se esquece de temperar o feijão do
jantar evitando, assim, nova reação violenta.
Moral da história: Alguns limites nunca devem ser ultrapassados. Não há meios de se
voltar atrás, depois que certos passos são dados.
Nos últimos dias, o que começou como uma manifestação de um grupelho
radical por uma redução de R$ 0,20 no preço da passagem de ônibus em São Paulo,
converteu-se naquilo que já é considerado o maior levante popular desde o “fora
Collor”, com a diferença de que, neste caso, a massa de gente não seguiu o
comando de partido algum.
As maiores capitais do país pararam e assistiram milhares de pessoas
clamando por um basta nos desmandos do Estado na suas vidas e finanças. O povo bradava nas ruas “não são só R$ 0,20”, dando a entender que o
aumento das passagens foi o ponto final de ebulição em uma seqüência de
acontecimentos que levaram o brasileiro ao limite de sua tolerância.
As manifestações – com invasão de casas legislativas, cerco à Prefeituras,
interrupção do tráfego em grandes capitais – atingiram o ponto de não retorno.
Não é mais possível deitar, apagar as luzes e fingir que nada aconteceu.
Entretanto, eis que depois de uma semana de protestos, Prefeitos e
Governadores no país inteiro resolveram baixar as tarifas de transporte público
em valores que variam entre R$ 0,05 e R$ 0,20. Imediatamente a imprensa passou
a afirmar que “o povo venceu”. Será?
Se o motivo da insatisfação era a corrupção endêmica no país, os impostos
escorchantes, os serviços públicos sofríveis, os gastos injustificáveis com a
Copa do mundo, a impunidade dos mensaleiros e tiveram apenas como estopim o aumento
nas passagens de ônibus, o que podemos esperar, caso os protestos se encerrem após
a redução das passagens?
Certamente a corrupção e a impunidade serão mais desabridas do que já são, os tributos continuarão
a ser majorados - afinal, os R$ 0,20 de desconto na passagem têm que sair de algum lugar – os
gastos injustificáveis com Copa do Mundo e outros exemplares do “pão e circo”
permanecerão, gritando “trouxas” em nossos ouvidos. Mas nunca mais a classe política
se esquecerá do tempero no feijão do jantar. É suficiente?